domingo, 17 de julho de 2022


 

R.E.M. - Losing My Religion (Official Music Video)

Mar, Al Berto

  "Nunca conseguiu viver longe do mar.
   A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias, de tempestades, de nomes de barcos e de peixes; de aves e de luz coalhada à roda duma ilha.
   Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos a vastidão incendiada do oceano - e ninguém sabe se esperam alguma coisa, alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer. 
   Aprendera, também, que o mar, aquele mar - tarde ou cedo - só existiria dentro de si: como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos para suportar a melancólica travessia do mundo.
   Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos, o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre por onde andou, obsessivamente - mas nunca chegou a encontrá-lo.

   Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no Zanzi-Bar, julgou ouvir o mar que perdera na voz dum jovem marinheiro grego. Mas não, o marulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha, era de outro mar - fechado, calmo - propício aos amores inquietos e à lassidão embriagante do sol e do vinho.
   Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro ao rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco: onde te vi despir regresso agora / para adormecer  ou chorar e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento coração das leoas em pedra.
   Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher, acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente o que ela lhe disse ao separarem-se:
   - Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste.
   E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país. Quando o fez, foi ao encontro do mar.
   Largou a cidade e os amigos, a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul, com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido, em lugar incerto, a meio da sua vida.
   Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo, e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde, por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens e da pobreza do mundo.
   Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou. Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse, e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente.

   Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar - esperando o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre.
   Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens, tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo, que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas."

sexta-feira, 15 de julho de 2022

A Morte Não É Nada Para Nós

"Habitua-te a pensar que a morte não é nada para nós, pois que o bem e o mal só existem na sensação. Donde se segue que um conhecimento exacto do facto de a morte não ser nada para nós permite-nos usufruir esta vida mortal, evitando que lhe atribuamos uma idéia de duração eterna e poupando-nos o pesar da imortalidade. Pois nada há de temível na vida para quem compreendeu nada haver de temível no facto de não viver. É pois, tolo quem afirma temer a morte, não porque sua vinda seja temível, mas porque é temível esperá-la.
Tolice afligir-se com a espera da morte, pois trata-se de algo que, uma vez vindo, não causa mal. Assim, o mais espantoso de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois enquanto vivemos, ela não existe, e quando chega, não existimos mais.
Não há morte, então, nem para os vivos nem para os mortos, porquanto para uns não existe, e os outros não existem mais. Mas o vulgo, ou a teme como o pior dos males, ou a deseja como termo para os males da vida. O sábio não teme a morte, a vida não lhe é nenhum fardo, nem ele crê que seja um mal não mais existir. Assim como não é a abundância dos manjares, mas a sua qualidade, que nos delicia, assim também não é a longa duração da vida, mas seu encanto, que nos apraz. Quanto aos que aconselham os jovens a viverem bem, e os velhos a bem morrerem, são uns ingénuos, não apenas porque a vida tem encanto mesmo para os velhos, como porque o cuidado de viver bem e o de bem morrer constituem um único e mesmo cuidado.

Epicuro, in "A Conduta na Vida"

quinta-feira, 7 de julho de 2022

" — Quem ajeita os cabelos dos filhos? Quem ajeita a toalha sobre a mesa e a intimidade da casa? Quem ajeita os olhos dos filhos?— As mães. As mãos das mães cheias de naufrágios passados, mas onde existem flores que nascem todos os dias (...) — A minha mãe está na hora do lanche, no chá, no sofá castanho que já não existe (...)— A minha mãe está nos olhos da minha irmã, no nariz do João, nos ombros do Nuno, na delicadeza do Zé e na compreensão do Pedro.— A minha mãe está nas minhas gargalhadas, nas minhas sardas e na incapacidade de fazer planos. A mãe está na reforma agrária." A Metamorfose dos Pássaros" (2020) Catarina Vasconcelos

Brigitte Bardot

David Luraschi

Primeira Pessoa do Singular, Haruki Murakami


 

Pina Bausch at ImPulsTanz, Vienna International Dance Festival

Katia Chausheva