domingo, 17 de dezembro de 2023

BASHÔ, QUE CAMINHA (*) 

”Este homem em marcha sobre a Terra que gira (mas saberá ele que gira? Bem, não importa), está, como todos nós, em marcha dentro de si mesmo:  os dados registados no interior do cérebro, e que dia após dia aumentam, desaparecem ou modificam-se com novas impressões; as entranhas que se mexem dentro do ventre como espirais de nebulosas — morrerá de doença intestinal —; o sangue que lhe corre ou coagula nas veias de homem já de certa idade. Viagens sobrepostas umas às outras. A última etapa foi Osaka, onde nada ainda fazia antever a grande cidade dura e americanizada dos nossos dias. Uma disenteria de Outono levou-o. Esperava-se, com uma certa avidez, o poema tradicional dos últimos momentos, mas Bashô havia dito, uns anos antes, que todos os seus poemas eram poemas dos últimos momentos. 
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Não vemos duas vezes a mesma cerejeira, nem a mesma lua recortando um pinheiro. Cada momento é o último, porque é único. Para o viajante, essa percepção aguça-se pela ausência de rotinas falaciosamente tranquilizadoras, típicas dos sedentários, que fazem crer que a existência vai permanecer como está durante algum tempo. Na noite anterior à sua morte, Bashô rabiscou versos inacabados que não eram, na verdade, o último poema convencional, mas os discípulos, decepcionados, tiveram de se contentar. Neles, apresentava-se a vaguear, em sonho, por uma charneca de Outono. A viagem continuou.”

MARGUERITE YOURCENAR (Marguerite Cleenewerck de Crayencour, Bruxelas, 8 de Junho de 1903 — Bar Harbor, EUA, 17 de Dezembro de 1987), mulher de letras francesa, naturalizada norte-americana, que escreveu romances, novelas, autobiografia, poesia, ensaio, crítica literária e foi também tradutora. Foi a primeira mulher a integrar a Academia Francesa, fundada em 1634. Excerto, que traduzimos, do ensaio “Bashô sur la route”, in “Le tour de la prison”, Gallimard, p. 11 ss.
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Nota nossa:
(*) — Matsuo Bashō (松尾 芭蕉, Tóquio, 1644 – Osaka, 28 de Novembro de 1694), famoso poeta japonês.

"Como se a Terra corresse Inteirinha atrás de mim O medo ronda-me os sentidos Por abaixo da minha pele Ao esgueirar-se viscoso Escorre ...